Temos rodado muitas estradas do nosso país. É difícil hoje em dia passarmos por uma estrada sem grandes rastros de destruição. Geralmente vemos grandes pastagens, montanhas cavadas por mineradoras, monocultura. Soja, muita soja. Os parques são em geral ilhas de preservação em meio ao desmatamento.

É raro chegarmos a um parque nacional e já vermos bem antes uma mata mais íntegra, como aconteceu ao chegar a Arataca. Víamos ao longe uma mata mais alta, densa e íntegra. O motivo tomamos conhecimento depois: o regime cabruca de plantio de cacau.

Diferente do que foi feito em grandes lavouras de café ou cana de açúcar, o cacau desta região foi plantado sem derrubar a mata por completo. O chamado sub-bosque foi retirado, causando impactos, mas as árvores mais altas foram mantidas para dar sombra aos cacaueiros, que são mais produtivos assim que se plantados em pleno sol.

O café também prefere sombra, mas a escala e o uso de veneno, também conhecido como agrotóxico ou pesticida, fizeram com que as áreas fossem primeiro desmatadas e depois plantadas as linhas de monocultura. Com isso é criado um desequilíbrio na natureza, sobram insetos e faltam aves. Os produtores preferem na maior parte das vezes plantar contra a natureza e usar veneno ao invés de plantar com a natureza.

Aqui foi diferente. O cacau, além de crescer melhor na sombra, permite que a matéria orgânica de outras espécies se complemente, enriquecendo o solo, que haja um ambiente propício a fungos e bactérias, e que a fauna continue vivendo e ajudando a replantar a floresta. Claro que a fauna e a flora prefeririam que o ambiente não fosse alterado em absoluto. Mas o regime cabruca minimiza os efeitos nocivos do plantio.

Mesmo assim, houve no Brasil um estímulo à superprodução de cacau usando uma única espécie, que foi prejudicada pela vassoura de bruxa. Há quem diga que os estrangeiros “plantaram” a vassoura para prejudicar os brasileiros. Fato que os então coronéis, grandes detentores de terras, não tinham herdeiros interessados e capacitados a lidar com essa situação e acabaram abandonando uma grande parte das terras.

Foi aí que a mata original ganhou ainda mais espaço e voltou ao estágio atual. É por isso que chegando a Arataca, base para visitar o Parque Nacional da Serra das Lontras, dá para ver de longe a floresta. É por isso que os rios foram protegidos e a umidade da região hoje continua elevada. É a floresta que se auto-sustenta.

O parque não é tão grande em extensão, mas faz parte de um corredor ecológico que inclui um Refúgio de Vida Silvestre e uma Reserva Biológica em Una. Estas montanhas das três serras (Lontras, Javi e Quati) que compõem o parque têm uma característica mais parecida com as montanhas do Sudeste. São pouco estudadas, conhecidas e visitadas, mas extremamente importantes.

Há poucas trilhas e atrativos acessíveis no parque. No entanto, o que visitamos era de uma beleza e riqueza ímpares.

Começamos nossa visita pela Cachoeira de Cazuza. A cachoeira não está no parque, mas é o ponto mais alto do rio que nasce no parque a que conseguimos chegar e visitar. Há uma sucessão de quedas d’água com diversos pontos para entrada e banho. O acesso é fácil, mas é sempre recomendável ir com carro traçado, dado que as chuvas ocorrem sem aviso prévio e o barro vira um verdadeiro sabão.

Também fomos à cachoeira Pitu de Ouro na Serra do Javi. Conta a lenda que alguém tinha uma propriedade bonita e barata nessa serra, cujo acesso é mais difícil. E que o vendedor, ao procurar compradores, recebia a seguinte resposta ao convite de visitar e avaliar: “já vi”. Segundo a sabedoria popular, as pessoas não queriam ir lá e ficavam sem graça de dizer, então diziam que já haviam visto e não tinham interesse.

Pitu é um crustáceo parecido com camarão que havia aos montes nessa região, mas hoje são raros. É um dos alimentos das lontras, que dão nome ao parque, mas que hoje estão sumidas.

A cachoeira com acesso gratuito é por uma propriedade privada. É daquelas cachoeiras dignas de parque nacional (também fica na borda), com sua água transparente, seu poço gigante e sua queda magnífica, onde dá para ir atrás. Foi ali que vimos por primeira vez um peixe subindo uma parede: era um cascudo que ia subindo a cachoeira. Aqui não postamos vídeos, convidamos a ver em nosso canal no YouTube.

Tivemos o privilégio de sermos acompanhados por duas pessoas que vivem no Assentamento Terra Vista e hoje estão vinculados ao parque nacional através do ICMBio: Dilmário e Marcos. Eles nos levaram a uma das duas propriedades que já foram regularizadas fundiariamente pelo ICMBio, mas onde a estrutura ainda não está própria para o turismo.

Nos conduziram por uma belíssima trilha descendo um rio, passando por árvores centenárias e terminando em uma plantação de cacau no regime cabruca, onde vimos a relação com o restante da floresta.

Neste blog não falamos muito sobre o entorno e sobre todas as relações humanas dos parques, mas a Serra das Lontras está tão intimamente ligada ao Assentamento Terra Vista, que vale a pena contar que ali foi iniciada uma transição agroecológica há cerca de 20 anos, permitindo que hoje haja duas escolas, uma delas com ensino técnico, uma fábrica de chocolate “tree to bar”, a produção de óleos essenciais pelas mulheres, horta orgânica, entre tantos outros produtos orgânicos como o cacau, o açaí e a banana.

Ali também está sendo reflorestada uma área para extração futura de madeira e frutas, tudo em um sistema agroflorestal.

Pode parecer que não há nada a ver uma coisa com outra, mas a visita ao parque sem conhecer o assentamento não será tão rica.

No link você pode acessar o mapa por onde passamos e ver em detalhes onde fica cada localidade citada acima:

12 comentários em “Parque Nacional da Serra das Lontras: o parque da cabruca

  1. João Barros says:

    Realidade composta de necessidade de produzir com a certeza de que temos que preservar.
    Uma palavra define, sustentabilidade.
    Excelente matéria.

    • Christian Boll says:

      Ola, obrigado por seu site sobre o parque das Lontras. Gostei muito do filme tambem. Nessa cachoeira Pitu de Ouro na Serra do Javi ou perto, tem possibilidade de passar a noite num lugar? Agradeço, Christian

      • dennishyde says:

        Olá Chistian, há sim, mas infelizmente não temos o contato. Vou te mandar um email em seguida com mais alguns contatos que podem indicar com quem falar. Abraços

  2. valentina says:

    Estou querendo visistar o parque é realmente não achei muitas informações, só a matéria de vcs mesmo! Obrigada!
    Tenho uma dúvida, pra conhecer o parque e fazer as trilhas é só chegar no assentamento terra vista? O tem que marcar e se contatar com alguém de lá antes? Então, se vcs tiveram o contato de alguém de lá agradeço!

  3. Caio Caldas says:

    Olá, Dennis! Primeiramente, parabéns pelo relato, me encheu de vontade de conhecer essa maravilha! Onde posso conseguir telefone para contato com alguém que possa nos guiar por lá? desde já agradeço a atenção!

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