Descer o rio para chegar
Os parques tendem a proteger as nascentes, que são os locais mais sensíveis e que requerem maior cuidado, estamos acostumados a subir rios. Não é à toa que grande parte dos parques está em Serras ou Chapadas. Aqui foi diferente, o caminho ao parque era rio abaixo e não acima.
A proteção que em geral acontece (e precisa continuar acontecendo) em nascentes é necessária também nas florestas. Algumas árvores chegam a bombear na atmosfera até 1 mil litros de água por dia! Se uma família brasileira em média chega a gastar 150 litros de água ao dia, uma única árvore chega a “abastecer” quase 7 famílias.
O Parna do Acari é muito recente, foi criado em 2016 e está inserido em um mosaico junto a outras unidades de conservação no chamado “Arco do Desmatamento”. Se esse parque não existisse, não haveria uma barreira à expansão do desmatamento nesta região.
Cada unidade de conservação aqui protege um adicional de 20% de mata que poderia ser derrubada se ele não existisse (no bioma amazônico é permitido desmatar 20% de uma propriedade). Só o parque nacional do Acari, que tem quase 900 mil hectares, evita que uma área de 180 mil hectares seja desmatada. A cidade de São Paulo tem pouco mais de 152 mil hectares.
Parece muito? Não é não: quantas famílias no Brasil dependem da água que as florestas bombeiam todos os dias?
Arco do Desmatamento
Este não é o único parque na região conhecida por ser uma barreira de Unidades de Conservação para conter o desmatamento na Amazônia, mas é o último que foi criado e talvez seja um dos mais emblemáticos, pois é possível ver a diferença entre o que ocorre dentro e fora do parque nacional, assim como das demais unidades de conservação.
As imagens abaixo foram colhidas no site do Instituto Sócio Ambiental. São do mesmo ponto, com diferença de 22 anos. É um mapa de Unidades de Conservação (contorno rosa: federais; contorno amarelo: estaduais), Terras Indígenas (contorno vermelho) e desmatamento acumulado (pontos em vermelho). A primeira figura é de 2000, a segunda de 2011 e a terceira de 2022:
Abaixo com zoom no Parque Nacional do Acari e entorno com o mesmo padrão de cores: 2000, 2011 e 2022.
1a tentativa: descer o rio Acari
Quando você olha no mapa, parece fácil. Uma estrada chamada Transamazônica, uma cidade chamada Apuí e um rio chamado Acari, que corta a estrada e leva até o parque. Então é só ir até Apuí, alugar um barco, levar até a beira do rio e navegar até o parque! Parece simples, mas não é assim não… Olha o que é necessário:
1) Percorrer a Transamazônica até Apuí: tranquilo, saindo de Humaitá a estrada é quase tão boa quanto uma estrada de asfalto mesmo com chuva (checks)
2) Barco e motor: ok, conseguimos o contato de alguém que não só tinha barco e motor, mas que tinha uma carreta para levá-los até a beira do rio (dois checks)
3) Combustível, água e comida: em linha reta seriam 50km, o que indica que com as curvas do rio seriam 75km (só ida e até a beira do parque), embarcamos 90 litros de combustível, água e comida para passar o dia
4) Piloto: muitos dos rios da Amazônia são rasos e têm pedras no fundo, fomos na época mais cheia e conseguimos um piloteiro que mora na beira do rio e conhece na época seca, ou seja, saberia navegar na época cheia (quatro checks: bom sinal!)
Mas… ali em Apuí ninguém que conhecemos ou com quem conversamos havia ido tão longe ou tinha informações de onde era o parque (que por lá é chamado de reserva…)
Depois de 3h descendo o rio, tendo percorrido 70km, chegamos a uma corredeira intransponível. Até podíamos ter insistido e descido a voadeira (e o motor, e o combustível, e nós mesmos) no braço, mas não nos atrevemos a fazer isso, seria arriscado. E como seria para voltar?
2a tentativa: aproximação por carro
O rio Acari “entra” no parque pelo sul, 50km em linha reta da Transamazônica, e “sai” do parque pelo oeste, perto de uma estrada que liga Apuí a Novo Aripuanã. Há uma estrada que liga as duas cidades e que dista, em linha reta, uns 20-30km do parque. Por que não ir de carro?
Recebemos a informação de que havia um “ramal” entre a estrada estadual e o rio, na altura do parque. Lá saímos nós às 6h da manhã de Apuí prevendo 4h30 para chegar até o rio.
Foi um dia de poucas fotos, até porque percorremos 100km na estrada em péssimas condições (cerca de 3-4 horas), tentamos alguns ramais, conversamos com muita gente e não teve jeito, não há conexão entre a estrada e o Parna do Acari. Depois de 8h voltamos a Apuí sem ter chegado ao parque novamente.
3a tentativa: descer o rio Sucunduri
Mais adiante na Transamazônica há outro rio, o Sucunduri, que nasce no Mato Grosso, corta a estrada e poderia nos levar ao parque. Nesse ponto a Transamazônica já não está tão boa, o acesso para levar o barco também é difícil. Mas é possível, com o Fernando e o Cláudio, foi possível chegar ao rio. E ao parque?
Um rio mais largo, com menos curvas e mais profundo. Às margens dá para ver que há grandes modificações: quanto mais perto da Transamazônica, mais pastagens, menos árvores.
Aqui foi mais rápido, apesar da chuva: 1h30 após sairmos de barco chegamos finalmente ao Parna do Acari, este é o caminho! Macacos e araras vinham nos dar as boas vindas e lá estávamos nós, no Parna do Acari.
Então, por que este é o Parna do Acari e não o Parna do Sucunduri? Não sabemos, até porque os parques carecem de registros históricos (olha a oportunidade para historiadores percorrerem os nossos parques e documentar tudo isso!?), mas especulamos que por haver um Parque Estadual do Sucunduri rio acima, devem ter optado por usar o nome Acari (do rio, que vem de um peixe “cascudo”) para não confundir.
Quem lê deve se perguntar: “Mas não era óbvio?” ou “Vocês foram os primeiros a ir?”
A resposta para a primeira é não. Este é o 4o parque nacional mais novo do Brasil, apesar de estar muito bem protegido, é pouco conhecido. Por não ter cachoeiras e ficar distante, não está no roteiro do lazer da população local. Por estar distante dos grandes centros, não atrai muitos visitantes, então é pouco documentado e pouco conhecido, é um ciclo.
E para a segunda também é não. Não fomos os primeiros a ir, mas talvez alguns dos primeiros a ir com o objetivo de documentar como é ir lá e o que o parque oferece em termos de atrativos turísticos.
Mas por que é tão importante chegar num parque nacional? E qual a importância de um parque nacional onde é tão difícil chegar? Será que nós achamos que este parque é menos importante que os outros, onde nos banhamos em cachoeiras, percorremos trilhas, dormimos e vimos o nascer do sol?
Qual a importância se o acesso é difícil?
Uma das maiores belezas dos parques nacionais não é a beleza em si, mas o que eles nos ensinam e mostram. Uma imagem ou um nome a gente até esquece, mas um aprendizado na pele a gente guarda para sempre.
No final dos anos 1960 o governo decidiu construir a Transamazônica. O objetivo inicial era ligar o Atlântico ao Pacífico, depois ir somente até o Peru, no final foi construído pouco mais da metade, a rodovia vai até Lábrea no Amazonas.
Segundo o historiador Fernando Dominience Menezes, “Uma das ideias naquele momento era levar os nordestinos para ocuparem áreas que não eram povoadas da Região Norte”. E “de acordo com a ideia dos militares na época, a interligação do Nordeste ao Norte, em especial as cidades isoladas, resolveria as problemáticas sociais que envolviam também a Amazônia.”
O artigo abaixo traz as fontes acima e uma série de informações adicionais e detalhadas sobre o assunto:
Ao invés de ligar Belém a Manaus numa linha reta, o traçado foi feito para cortar a Amazônia ao meio e ocupar a área com lavoura e pastagens. Diversas famílias receberam terras com a condição de desmatar pelo menos 50% da área em poucos meses. Quem não desmatasse o suficiente, perdia a área.
Pois bem, a estratégia de povoamento foi bem sucedida, tanto que nos anos 90 o desmatamento bateu recordes na Amazônia. Foram feitos estudos que indicavam que a partir de 20% de desmatamento o ecossistema perdia o equilíbrio.
O governo começou uma corrida então por proteger áreas para evitar essa bola de neve, principalmente no chamado “Arco do Desmatamento”, que vem de leste a oeste, de sul a norte, principalmente acompanhando estradas.
O Parna do Acari é portanto um parque criado entre outras Unidades de Conservação (Florestas Nacionais, Estações Ecológicas, Reservas Biológicas) para dar uma contenção no desmatamento, um limite físico.
E está dando certo! Dá para ver a diferença a olhos vistos entre o que ocorre dentro do parque e fora dele.
Rios voadores
Se você nunca leu ou ouviu falar sobre os rios voadores, recomendamos começar por aqui:
A gente não sabia que era tão rápido, praticamente automático. Sempre que vemos nos surpreendemos.
Logo após uma chuva na floresta é possível ver o fenômeno da evapotranspiração, quando a floresta devolve parte da água que acabou de cair nela mesma. Isso é de uma sabedoria e altruísmo incríveis. Não nossos e de nenhum humano, estamos falando da floresta mesmo.
Não deu outra: aguardamos a chuva passar para voar o drone e o que vimos foi o mais belo presente que algo ou alguém pode dar ou receber: água pura, limpa, provavelmente sem microplásticos. É essa a água que a Amazônia recebe, gera, circula e devolve para formar os rios voadores.
Que alimentarão os rios em outros biomas. Alguns que correrão até ela de volta, outros que irão longe, inclusive abastecendo as torneiras das grandes cidades.
Na escola a gente aprende sobre o ciclo da água, que a água potável é finita e circula, que a natureza é responsável por transformá-la nos diferentes estados (sólido, líquido e gasoso).
A floresta é capaz de redistribuir a água, uma das formas é através da evapotranspiração que gera os rios voadores que chegam até nossas torneiras. A floresta regula esse ciclo, e quando a gente desmata a gente rompe o ciclo, criando secas e enchentes. Não só onde foi desmatado, mas longe dali também.
Para mais informações dessa retroalimentação e importância da floresta como produtora de água, destacamos um artigo muito interessante e que usamos como base para algumas informações e dados acima:
No link você pode acessar o mapa por onde passamos e ver em detalhes onde fica cada localidade citada acima: