O rio da floresta ou a floresta do rio

O que é uma floresta? O nosso primeiro impulso é dizer que é um conjunto de árvores. Inicialmente pensamos em árvores iguais, aos poucos lembramos que são diversas, de várias alturas, idades e com diferentes sombras. Além das árvores, há outras plantas, mais baixas, fungos: ok, também são floresta.

Aí vêm os insetos, os mosquitos indesejados, as borboletas, besouros e abelhas que polinizam. Sem elas as flores não se tornam frutos: são floresta.

E quem come os frutos? Como as cutias, que guardam as castanhas bem escondidas para mais tarde. Esquecem e no lugar cresce uma castanheira. Ou os macacos e as antas, que comem aqui e defecam uma semente lá longe. A onça, que come todos eles e controla o tamanho da população? Tudo floresta!

Mas e a terra? O tronco caído? É morto ou é um nutriente vivo? Fato que é floresta. E a água? A água que cai, a água que corre e a água que evapora. É floresta?

Neste parque se já não estava claro, ficou evidente: impossível reduzir a floresta a um conjunto de árvores, mesmo indo lá em cima com o drone. Os rios estão todos escondidos, correm por baixo das copas. Os macacos cruzam de um lado a outro lá no topo das árvores, talvez até sem perceber se lá embaixo é terra, é barro ou é rio.

O parque circundado de uso sustentável

Chegar ao Parna da Serra da Cutia não é moleza não. A base do parque fica no distrito de Surpresa, que fica a 6h-7h de voadeira desde Guajará Mirim, que por sua vez está a 3h-4h da capital Porto Velho por carro. O caminho pelo rio é lindo, o rio Mamoré separa o Brasil da Bolívia e dá aquele sentimento de ir se aproximando aos poucos de lugar especial.

De Surpresa o acesso é de carro, mas a paisagem piora para melhorar. Cortamos por 1h30 uma pastagem longa onde (sobre)vivem as poucas castanheiras que sobraram de pé (é proibido cortá-las) até chegar à beira do rio Sotério. Nossa, que diferença! Umidade, temperatura, sons, cheiros. Humor e vida.

Estamos falando de um estado que, segundo o MapBiomas perdeu quase 32,2% da sua vegetação entre 1985 e 2022. Um terço de toda a floresta nativa de Rondônia foi perdida em 37 anos. Um estado que representa 4,4% da área da Amazônia legal e foi responsável por quase 15% do seu desmatamento nesse período, quando a Amazônia perdeu em média 13%.

Durante esse período, uma área no sudoeste do estado foi resistência. Ali havia Terras Indígenas e populações tradicionais que viviam do extrativismo. Foi o que salvou. A área do parque estava ali no meio e ficou intacta.

Hoje há uma configuração muito próxima do ideal: um parque com sua proteção integral cercado de áreas protegidas com uso sustentável. Ainda que haja uma pressão em uma das pontas, o rio Sotério faz uma barreira natural e podemos comemorar que o parque seguirá seu lindo e importante caminho na conservação e educação ambiental.

Labirinto de igapó

Se tiver alguma coisa para lembrar deste parque que o torna especial e único, são os labirintos do rio Sotério. Sim, já conhecíamos florestas, rios e igapós, mas nada se compara.

O rio, como falamos outro dia, não fica evidente, nem olhando de cima. Quando você está nele, é difícil saber o que é o leito principal, o que é um igarapé que o alimenta, o que é um braço, o que é um lago. Sem os experientes piloteiros seria impossível ir do ponto A ao ponto B. E olha que andamos nesse rio!

Além do turismo voltado à educação ambiental das crianças e jovens do distrito de Surpresa, que está em andamento, seria lindo ver este parque ter um roteiro de caiaque pelos labirintos do rio. Remar no seu ritmo, sem barulho, sentido os sons e os cheiros da mata.

Mas… é super importante que haja um trajeto bem definido e é claro que lembramos da Rede Brasileira de Trilhas e do potencial de criar aqui uma rede que conecte não somente os atrativos do parque, mas também com todo o entorno, que já está preparado para receber os turistas.

Monitoramento de aves e mamíferos

A gente não resiste a um convite para fazer um voluntariado em parques nacionais, principalmente se for para fazer monitoramento de fauna ou flora. Já tivemos o privilégio de fazer o monitoramento na Serra do Pardo, lá no rio Xingu. E agora foi a vez da Serra da Cutia!

São 3 trilhas retas, cada uma com 5km e distando pelo menos 5km uma da outra. O monitoramento consiste em identificar e contabilizar avistamento de mamíferos e aves de médio e grande porte. O foco está nessas espécies porque são as mais ameaçadas pela caça e tráfico.

Para isso, a velocidade é em torno de 1km/h, em silêncio absoluto. As trilhas são limpas antes, não fica nem uma folhinha para pisar e fazer um crec que vai espantar os bichos antes que sejam avistados.

“Ah, então é tranquilo”, a gente pensa. Não se engane, caminhar devagar é bem cansativo, ainda mais com toda a atenção em procurar e identificar os animais.

O sonho de qualquer monitor de biodiversidade é avistar uma onça pintada. E não é que nosso grupo conseguiu? Depois de 8 anos, um total de 1.200 km percorridos, ela apareceu! As imagens são de uma câmera trap colocada depois (daquelas que tira foto sozinha com sensor de presença), mas foi emocionante ver a comemoração do grupo por ela ter sido avistada.

Além da comemoração pelo avistamento, uma das coisas que mais nos chama a atenção é como os bichos nos observam de volta. Como chegamos em silêncio, muitas vezes eles levam susto. Ao perceber que não somos ameaça, eles começam a nos observar.

Difícil é registrar tudo isso, mas quem será que está monitorando quem? Será que os macacos prego não estavam fazendo o protocolo deles e anotando: “três humanos, sendo dois homens e uma mulher, todos com mochila e suados, um deles usava óculos, parece que dois eram paulistanos porque ficaram de boca aberta muito tempo kkk”

Ah, e nem todo dia dá para ver tanto bicho assim. Mas a escassez é uma informação relevante, então ficamos felizes de realizar o monitoramento quando há muitos, poucos ou nenhum avistamento. Isso tudo vira informação valiosa, que depois é avaliada de forma consolidada e aberta, mostrando a saúde dos seres das florestas.

A relação do gado com as borboletas

Já ouvimos várias vezes a palavra bioindicador. São animais, plantas ou fungos que somente ocorrem quando alguma condição ocorre. Liquens somente ocorrem onde o ar é muito puro; Pato mergulhão somente vive onde a água é muito limpa; Borboletas frugívoras, que vivem onde a floresta está muito bem conservada. Há outras borboletas que são mais vistas em áreas abertas, mas que não ocorrem ou ocorrem muito menos, em florestas.

Aprendemos que há dois tipos de borboletas, as que se alimentam de frutas fermentadas e as que se alimentam de néctar. E que borboletas geralmente são diurnas, pousam com asas fechadas; diferente de mariposas, que tendem a ter hábitos noturnos (por isso menos coloridas, Darwin?) e pousam de asas abertas.

Pois bem, além de monitorar os mamíferos e aves, há um monitoramento de borboletas, realizado anualmente até 3 meses do final da época chuvosa. Vamos falar mais dele em seguida, mas é importante saber que tudo isso é feito para monitorar a saúde da floresta.

Se ao longo do tempo a quantidade de uma determinada espécie (ou tribo) diminui, pode significar que perdeu habitat. Se uma borboleta de área aberta aparece, pode significar que a pastagem está próxima demais.

Ou seja, as borboletas podem indicar que a saúde da floresta está indo bem ou mal. Essa saúde vai impactar em absolutamente tudo, mas elas podem ser um indicador mais rápido e mais fácil de coletar que outros. E os resultados podem ajudar a tomar ações para que outras espécies não sejam perdidas.

Onde há gado próximo, a floresta sente. E as borboletas podem nos mostrar isso.

Monitoramento de borboletas

Nós nunca tínhamos pego uma borboleta. Quando a gente é pequeno, “aprende” que elas soltam um pó tóxico que irrita os olhos e fecha a garganta. Só que não é bem assim, era fake news: as borboletas podem soltar escamas e não é recomendável colocar a mão no olho ou na boca. Mas não tem nada tóxico, perigoso, pode olhar de pertinho!

Então bora sair pegando borboleta? Peraí também, né? Elas são frágeis. E nenhuma fauna deve ser manipulada ou alimentada. Para participar do monitoramento como voluntários, recebemos treinamento. Termos aprendido não significa que vamos seguir pegando em borboletas, pelo contrário.

Elas são atraídas para uma armadilha, onde ficam 24h a 48h aguardando serem fotografadas (ventre e dorso), identificadas e soltas. São 16 armadilhas para cada uma das 3 trilhas, que são revistas 3 vezes. Se cada armadilha tiver 7 borboletas (uma boa média), são mais de 1.000 catalogadas.

Têm as pequenas, as fortes, as que se fingem mortas, as mais inquietas, as mais coloridas, as que parecem uma folha. Elas são categorizadas em “tribos” e quem tem maior conhecimento classifica por espécie.

Não tem uma igual à outra, cada uma tem manhas diferentes, muitas têm sinais de luta em suas asas. De forma geral, as fases de ovo, lagarta e pupa duram cerca de 3,5 meses, o tempo de vida de uma borboleta adulta por chegar a mais de 3 meses, mas varia muito de espécie para espécie.

Obrigado mais uma vez ao ICMBio por nos aceitar como voluntários e ensinar tanto. E às borboletas por terem nos aberto a visão para um mundo novo. Agora quando passeamos numa floresta, sabemos chamar, pelo menos algumas, pelo nome: “Oi Morpho elenor, como está esse azul?”, “Fala Nessea obrinus, você é Epicallini, né?”, “Caligo brasiliensis, teu ocelo parece um olho de coruja”, “Zaretis itys, você parece mesmo uma folha, hein?”

Os nossos professores na floresta

Eles chegam meio tímidos e com uma humildade imensa. E são eles que:

  • Construíram a base onde ficamos alojados
  • Já acompanharam todos os pesquisadores que possamos imaginar que passaram por aqui
  • Conhecem todos os caminhos dos rios, afinal na época seca foram eles que cortaram as árvores caídas e fizeram o caminho para a voadeira passar
  • Não só abriram as trilhas, mas vieram dias antes tirar cada folha, cada galho e cada toco para a trilha ficar limpa
  • Nos ensinaram a pegar as borboletas da forma correta
  • Fermentam o caldo de cana com antecedência para estar no ponto no dia da troca nas armadilhas
  • Fazem a checagem das nossas anotações todos os dias

Entre inúmeras atividades que permitem que o monitoramento de fauna e flora aconteça nas nossas Unidades de Conservação, fazem isso há anos.

Não estamos falando do Chuck Norris ou do Rodrigo Hilbert, são comunitários que nasceram na região e se criaram em uma área onde hoje é uma Reserva Extrativista. Passar uma semana com eles equivale a uma matéria inteira de faculdade.

O contrato deles é temporário. Depois de dois anos, prorrogáveis por mais um, eles precisam deixar suas funções e ficar no mínimo dois anos afastados. Assim funciona o trabalho dos Agentes Temporários Ambientais, pessoas com um conhecimento, um histórico e uma capacidade sem igual.

Nosso agradecimento aos irmãos Ricardo e Elino, ao experiente Israel e aos mais novos, mas não menos importantes, Breno, Dejair e Leandro. E ao Ítalo, representando uma equipe incrível da NGI Guajará-Mirim como servidor do ICMBio, que está está fazendo uma linda conexão do parque com a comunidade, nos deu um banho de loja em Rondônia e na relação do parque com o entorno. Sem vocês, o que teríamos?

No link você pode acessar o mapa por onde passamos e ver em detalhes onde fica cada localidade citada acima:

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