A Serra da Bodoquena fica espremida entre a reserva indígena Kadiwuéu, a oeste, e os “atrativos” da cidade de Bonito, a leste no Mato Grosso do Sul, a uns 350km de Campo Grande (acesso 100% asfaltado).

Esse parque é um resquício de Mata Atlântica em meio ao Cerrado, abriga algumas das nascentes dos rios visitados a partir da cidade de Bonito para fazer flutuação e outros esportes aquáticos, assim como uma fauna e flora endêmicos, diversos sumidouros e ressurgências de rios.

A harpia, a águia brasileira, também pode ser encontrada lá, apesar de não ser nada fácil (nós não a vimos): https://www.opantaneiro.com.br/bodoquena/harpia-maior-aguia-do-pais-e-flagrada-cacando-macaco-em-atrativo-de/165144/

Com uma área dividida entre duas porções não contínuas, o parque maximiza a área de contato com propriedades vizinhas, o que dificulta a organização do acesso ao parque. Alguns dos rios que cortam o parque são perenes, mas somem e voltam a aparecer quilômetros abaixo. Outros são intermitentes e cessam na época seca.

Ou seja, este é um parque intermitente tanto do ponto de vista natural, pois as estações do ano criam esses fenômenos, quanto pela área em que foi delimitada, que não é contínua.

Chegando ao parque, fomos altamente desencorajados a visitá-lo: “não há acesso”, “as cachoeiras estão secas”, “os guias preferem ir a Bonito”, “não há estrutura de banheiros”. Isso tudo somente nos encorajou mais ainda a procurar entender e visitar esse parque. Nos surpreendemos positivamente.

O que saber e fazer antes de ir ao Parque Nacional da Serra da Bodoquena

  • O parque não tem acesso público ou portaria ou sede
  • O acesso é feito através de propriedades particulares, sempre requer reserva e pagamento, com exceção do Rio Perdido
  • Guias são obrigatórios para visitação, inclusive no Rio Perdido, apesar de ser uma trilha fácil e bem sinalizada
  • A maior parte dos pontos que podem ser visitados está próxima à cidade de Bodoquena, MS, e do assentamento Canaã; o Rio Perdido está mais próximo da cidade de Bonito, MS
  • Os acessos são feitos sempre por estradas de terra, mas não há necessidade de veículo 4×4
  • Não há estrutura de banheiros, lanchonetes/restaurantes ou camping no parque; em algumas das propriedades que dão acesso ao parque há estrutura
  • A água, apesar de limpa, não é recomendada para consumo, pois tem alta concentração de cálcio e magnésio, pode gerar reações em quem não está acostumado
  • Há muitos rios no parque, não esqueça de levar sempre trajes de banho
  • Não há sinal de 4G no parque
  • parque é pouco visitado, inclusive pela população do entorno, mas está em processo de abertura de mais locais para visitação

Um parque que desafia os padrões de beleza pela sua intermitência

Começamos nossa visitação ao parque pelo único ponto de acesso que não requer reserva ou pagamento: Sumidouro e Ressurgência do Rio Perdido. O acesso ao Rio Perdido é feito pelo lado oeste da porção sul do parque. Não há sinalização para chegar até o início da trilha, mas uma vez lá a trilha é muito bem estruturada e sinalizada.

A trilha começa em um poço onde o rio simplesmente some. Parece um lago e não há qualquer sinal de onde esse sumidouro esteja, um redemoinho ou correnteza. Talvez por esse motivo seja proibido entrar nesse ponto, dado que o sumidouro pode sugar uma pessoa ou um membro. Seguindo a trilha abaixo, sem o rio ao lado, muitas árvores são identificadas não somente com nome, mas também com a época de floração e frutos, o que torna a visitação ainda mais interessante.

Depois de percorrer aproximadamente 1,5km, o rio ressurge das pedras, tão misteriosamente como havia sumido antes. Nesse trecho há uma série de deques e pontes para visualização do rio, aqui cristalino, entre a sombra da floresta. Depois desse ponto é possível retornar ou seguir por uma trilha rio abaixo, onde ainda há mais cinco deques com acesso a poços para banho.

Apesar do calor que fazia, a floresta conferia uma sombra que reduzia muito a temperatura do ambiente. Mas mesmo assim vale a pena entrar no Rio Perdido, a água tem uma temperatura ótima e é possível ver como suas cachoeiras se formam.

Ao contrário de outras cachoeiras que já vimos e que são formadas a partir da erosão da água, estas cachoeiras crescem com o tempo. Isso acontece porque as folhas e galhos que se acumulam na parte de cima das cachoeiras são calcificadas e passam a fazer parte das cachoeiras. Apesar de estarem em crescimento, são estruturas frágeis e não devem ser tocadas ou pisadas, com risco de quebra do que a natureza formou e mesmo de um acidente.

Um dos principais rios que nascem e cortam o parque é o Salobra. O antigo assentamento Canaã deu lugar a uma série de propriedades que exploram o acesso ao rio, desde banho e bóia cross até rapel. É na beira desse rio que fica a RPPN Cara da Onça (@rppncaradaonca), na qual fomos convidados a visitar pelo professor Edson.

No início da expedição ficamos na RPPN Instituto Alto Montana e desde então temos procurado visitar RPPNs sempre que possível. RPPNs são Reservas Particulares do Patrimônio Natural, Unidades de Conservação particulares: uma vez decretadas, não podem ser desfeitas. Cada RPPN tem seus objetivos estabelecidos e periodicamente verificados, bem como um plano de manejo. A RPPN Cara da Onça (http://www.imasul.ms.gov.br/wp-content/uploads/2015/06/7-PlanodeManejoRPPNCaradaon%C3%A7a.pdf) permite pesquisa científica, ecoturismo e educação ambiental. Não há portaria, mas visitantes são muito bem vindos. É necessário contatar o Edson antes para combinar o dia em que ele ou outra pessoa estará por lá.

Além da beleza natural do Rio Salobra e da super companhia do Edson e da Loraine, é possível ver na prática o que é uma área de amortecimento. Rio acima é parque, rio abaixo é cidade. A RPPN, assim como diversas outras propriedades que ficam ao longo do rio, têm a responsabilidade de fazer essa ponte. De nada adianta uma nascente de rio e logo em seguida o mesmo será drenado ou poluído. A RPPN, além de conservar, colabora muito na educação ambiental no melhor local possível: a natureza.

Também a porção norte do parque ficam o canyon do Rio Salobra e a Lagoa Esmeralda, ambos acessados através da @ecoserrana. O receptivo estava em construção na nossa visita, mas a natureza mais que compensou.

O canyon do Salobra é um acquatrekking, uma caminhada ao longo do sinuoso rio. Além de passar por diversos poços, é um lugar perfeito para observação de aves, principalmente nos paredões com até 80 metros de altura. Uma trilha que pode ser feita até o ponto em que você ficar confortável de ir, o grau de dificuldade vai aumentando ao longo da trilha.

A lagoa Esmeralda é a nascente do Córrego Limoeiro. Para acessar é necessário fazer uma trilha de 2,5km (seco), chegando ao poço onde também deságua uma cachoeira na época de chuvas. Ninguém chegou ainda ao fundo do poço, mas estima-se que tenha mais de 60 metros de profundidade. Ali, por ser um lago perene, os animais vão diariamente beber água e se alimentar.

O último ponto que conhecemos foi a trilha do Rancho Branco. Fica um pouco antes do assentamento Canaã, ainda mais perto de Bodoquena. Apesar de ainda curta, essa foi a trilha mais longa que fizemos no parque, com 5,5 km. Muito bem sinalizada, a trilha vai ao longo do Rio Santa Maria que na parte de baixo tem água corrente e na parte de cima é seco. Pois é, não escrevemos errado, a água surge na metade do rio e isso somente pode ser visto na seca, pois na época de chuvas o rio todo é coberto de água e a ressurgência fica escondida.

Esse parque não estava no nosso roteiro neste momento, estava previsto para 2024. Íamos depois porque sabíamos que a visitação pública estava em estruturação, mas decidimos adiantar justamente para conhecer um parque no processo de estruturação. Como falamos no início, fomos altamente desencorajados a conhecer esse parque na época seca. Saímos não somente felizes de ter visto o parque durante a estruturação quanto por ter ido na época seca e visto uma beleza que ficaria inundada e sobreposta na época de cheia.

Nossa conclusão sobre o desencorajamento é o “padrão de beleza” dos “atrativos” de Bonito.

Bonito é uma cidade conhecida no Brasil todo, e provavelmente no exterior, pelos rios transparentes onde é possível fazer flutuação ao lado de peixes, rapel, mergulho em cavernas, entre outros.

É uma cidade altamente desenvolvida para o turismo, com excelentes opções de hospedagem, restaurantes e com o turismo muito bem organizado, inclusive transporte. Os locais visitados têm receptivos e são reconhecidos não somente pela sua beleza, mas por sua comida. Sim, Bonito é fora de série, mas os preços são também bastante altos.

O ponto negativo de Bonito é que nenhum “atrativo” permite que você fique um minuto a mais, contemplando a natureza, lendo um livro à beira de uma cachoeira. O turismo tomou tal proporção que é necessário sempre seguir adiante para dar espaço para o próximo grupo.

Para mergulhar num dos rios mais translúcidos do mundo, sem perrengue, é excelente. Para aprender um pouco mais sobre a natureza, entender como a Mata Atlântica está em meio ao Cerrado, saber como aconteceu uma reforma agrária onde hoje são construídas plataformas de rapel, há muito pouco espaço. O turismo em Bonito pode ser lindo, mas não explora o ecoturismo, passou a ser um turismo em massa.

O padrão de beleza de Bonito são rios translúcidos, cheios o ano todo, van que busca e retorna ao hotel, pouca caminhada, receptivos bem estruturados, comida boa e farta.

O padrão de beleza do parque nacional são rios com sumidouros e ressurgências, canions para serem percorridos com água nos joelhos, observação de fauna e flora, silêncio e contemplação.

Hoje no Brasil, o primeiro vende mais, mas há espaço para ambos

Não há beleza somente na água mais transparente do mundo, no rapel mais alto do mundo, na cachoeira com a maior vazão. Permitir-se ficar em meio ao ambiente natural observando com calma e atenção nos permite voltar para nossas casas não somente com fotos e boas experiências, mas nos permite mudar a nossa percepção de natureza, nos reinserir num local de onde nunca precisamos ter nos excluído.

Mapa do Parque Nacional da Serra da Bodoquena

No link você pode acessar o mapa por onde passamos e ver em detalhes onde fica cada localidade citada acima:

5 comentários em “Parque Nacional da Serra da Bodoquena – o parque intermitente

  1. Tatiana Ono says:

    Otimo texto!! Sou moradora do Mato Grosso do Sul. Conheço Bodoquena há 19 anos e o turismo que fazemos lá, nessas quases 2 decadas, é um turismo de “escama de arvore” – reinventei ou me apropriei deste termo nesta minha ultima estadia por lá – turismo feito boca a boca, perguntando ou tendo indicacoes de amigos. Nesses 19 anos fizemos grandes amigos nessas visitas a Bodoquena. Tudo que li no texto, diz sobre como me sinto sendo turista em Bonito e me sentindo como parte das belezas que contemplo em Bodoquena. Queria mais dicas sobre o Rio Perdido. Conheço pouco sobre ele, mas ele é lindo demais!!

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