O Pantanal que não queríamos ver

Não trazemos boas notícias. Chegamos a um bioma coberto de fumaça. É impossível de ignorar e de aproveitar bem. Olhos ardendo, tosse, respiração difícil, roupa cheirando a fumaça. Como esquecer que nós estávamos de passagem, mas milhões de pessoas vinham sofrendo havia meses aquela situação, sem saída?

O bioma que perdeu 80% da superfície hídrica nos últimos 40 anos, segundo o MapBiomas. A maior planície alagável do Planeta tinha 21% da sua área coberta por água, hoje são 4%. Não há nascentes no Pantanal (pasme) e chove muito pouco (pasme novamente).

A água vem principalmente do Cerrado, que perdeu 27% da sua vegetação nativa nesse período, reduzindo sua capacidade de absorção, passou a consumir mais água por conta das grandes lavouras, de quebra assoreando os rios, e sofreu uma redução das chuvas, como consequência do desmatamento na Amazônia.

Não tem jeito, está tudo conectado: uma árvore retirada da Amazônia para criar pastagem é uma vida silvestre a menos no Pantanal.

Segundo o MMA, o Pantanal é um dos biomas com menor área protegida: menos de 5% (a média brasileira é de 19%, puxada pela Amazônia). Apesar de o bioma ter um único parque nacional, ele corresponde a 20% da área protegida por Unidades de Conservação nesse bioma.

Chegamos achando que o Pantanal era tudo uma coisa só, e tomamos conhecimento que são 10 Pantanais diferentes em termos de flora, fauna e até regime de inundação! Por isso, ampliamos nosso escopo e conhecemos bastante além do parque em si.

Os 10 Pantanais

  1. Pantanal do Paraguai
  2. Pantanal do Nabileque
  3. Pantanal de Miranda
  4. Pantanal de Aquidauana
  5. Pantanal do Abobral
  6. Pantanal da Nhecolândia
  7. Pantanal do Paiaguás
  8. Pantanal de Barão de Melgaço
  9. Pantanal de Poconé
  10. Pantanal de Cáceres

O SOS Pantanal aponta uma 11a microrregião: Pantanal do Porto Murtinho, que na lista acima está contido no Pantanal do Nabileque. Seja qual for a quantidade que conseguimos identificar e separar para estudar, é uma diversidade imensa.

Impressionantemente, o Pantanal consegue ser belo e rico em biodiversidade mesmo sob toda essa adversidade. Mas até quando? Estudos apontam que até o final do século o bioma pode acabar. Se os estudos são conservadores, isso deve acontecer bem antes, se é que ainda há volta.

Não era o Pantanal que queríamos ter visto, mas é o que ele é hoje. E se ele se apresentou para nós desta forma, tem um motivo. Talvez seja nos trazer o senso de urgência. Que tínhamos, mas talvez não na medida que precisávamos ter.

É um parque que passa dos seus limites em termos de importância. É um parque que representa um bioma inteiro que sofre consequências de nossas ações tomadas além dos limites do próprio bioma.

A Transpantaneira

O Parque Nacional do Pantanal Matogrossense só pode ser acessado de barco, mas há outras formas de conhecer outros pantanais antes de chegar. Uma das formas é pegar a Transpantaneira e cruzar suas 120 pontes. E por que fala-se tanto das suas pontes, não é mesmo?

São 137 km de terra entre Poconé (que fica a 1h30 de Cuiabá por asfalto) e Porto Jofre, na beira do rio Cuiabá. O rio Coxipó Mirim que nasce no Parna da Chapada dos Guimarães (Cerrado) desce por aqui até o rio Paraguai, que desemboca lá em Buenos Aires.

Um show de vida: a cada ponte um poço de água remanescente (fomos na época seca) cheio de jacarés, capivaras, aves de diferentes espécies. Deve ter muito peixe ali, mas a comida é disputada e claro que não vamos nos aproximar para conferir.

Um sem fim de ipês rosa e alguns amarelos aparecendo premiam quem passa por ali. Mas, como nem tudo são flores: fumaça, muita fumaça.

“Segundo o BDQueimadas, quase 95% do número recorde de 3.372 focos de incêndio registrados de 1º de janeiro até 3ª feira (25/6) ficam em áreas privadas (…)”
“Já o monitoramento do LASA/UFRJ verificou que menos de 1% de todos os focos de calor detectados pelos satélites do laboratório tiveram raios como origem.”

https://climainfo.org.br/2024/06/28/pantanal-em-chamas-95-do-fogo-tem-origem-em-propriedades-privadas

Onças em Porto Jofre

3 anos, 2 meses e 10 dias de expedição: não demos a sorte de topar com uma onça pintada ou parda nas trilhas. E olha que já foram quase 4 mil km percorridos a pé, hein? Bom, parece que nos rendemos!

Em Porto Jofre há um turismo de avistamento de onças. Há algumas décadas, alguns proprietários rurais que recebiam pessoas interessadas a pescar, ao se depararem com muitas onças, viram a oportunidade de turismo de avistamento. Aos poucos elas ficaram habituadas.

É um safari de barco, subindo o Parque Estadual do Encontro das Águas. Tuiuiús em seus ninhos, ariranhas, capivaras: todos sem medo dos barcos. No início do dia vimos duas onças de relance. Mas era uma enorme competição dos barcos pelo melhor ponto, junto com muita fumaça vindo das queimadas.

Foi quando o piloto do nosso barco (fomos somente nós dois, maior surpresa!) decidiu pegar um outro caminho e lá estavam:

 – o Ousado, que em 2020 foi resgatado dos incêndios com suas patinhas queimadas: 4 anos de idade, dormindo tranquilo porque no dia anterior abocanhou um jacaré

 – uma fêmea também dormindo tranquilona, depois ainda foi tomar um banho de rio: não conseguimos identificar quem era

 – o Bororo, um dos maiores e mais velhos machos, também tranquilão descansando na sombra

Ciência cidadã junto das onças pintadas

O jaguaridproject é um projeto de ciência cidadã que registra as onças avistadas nesta região. Na última década foram avistadas quase 380 onças. Estão habituadas, mas não são alimentadas (pelo menos é o que todos afirmam, alguns indicam que houve um tempo em que foram atraídas e hoje vivem de forma autônoma).

É o mesmo esquema que acontece com os chimpanzés e os gorilas de montanha na África. Bichos que sabem que não somos ameaça e não ligam para nós, desde que mantenhamos a distância segura para eles. Estamos todos seguros em um barco, de onde é proibido descer.

Sim, é caro. E não, não fica em um parque nacional, foi uma exceção. Mas estávamos ao lado e com nosso carro, facilitando a logística. Seria mais caro voltar até aqui um dia para visitar.

A onça é topo de cadeia, então não basta evitar a sua caça (que até pouco ocorria, pois as onças atacavam o gado que era cada vez mais avançava nas imediações), mas precisa de um ambiente inteiro onde haja comida suficiente, sombra, água fresca e segurança.

E sim, quase só tem estrangeiro. Eles chegam com suas lentes que valem mais que nosso carro (que é nossa casa, aliás). No início nos sentimos diminutos com nosso celular e nossa câmera com zoom. Mas que saber? Talvez nós fôssemos os mais interessados em olhar e admirar as onças, independente do clique perfeito.

Foi uma pena ver que algumas pessoas não mantinham silêncio durante o avistamento. Nos pontos designados como “banheiro” no mato, um festival de papel higiênico abandonado esperando para ser levado pelo rio na próxima cheia. Que tristeza.

Talvez só nós dois tenhamos olhado cada detalhe com atenção, saboreado o momento, agradecido cada uma das cinco onças deixaram que a gente as admirasse. Se puder: vá. As onças ficam mais visíveis na época seca (junho a setembro) ficam perto o suficiente para serem fotografadas com um celular e longe o suficiente para não oferecer riscos. Leve uma sacolinha e traga de volta todo o seu lixo.

Admire. Porque nós podemos atestar que ver uma onça em um ambiente natural é coisa rara, um privilégio. E este bioma está sob ameaça, não sabemos até quando as onças conseguirão perseverar.

O Parque Nacional

O Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, assim como diz o nome, fica no MT. O acesso pode ser feito tanto pelo MT (Porto Jofre) quanto pelo MS (Corumbá), mas sempre de barco.

A principal atração do parque está em percorrer os rios e fazer observação de fauna. O parque fica na “esquina” dos rios Paraguai e São Lourenço (também chamado de Cuiabá). Um sem número de jacarés e de aves. Das garças brancas e mouras aos tuiuiús.

O parque é base para os brigadistas que vêm do Brasil todo combater os incêndios que acontecem dentro e fora dele. O clima é quase de guerra (e será que não é uma mesmo?), com helicópteros pousando e partindo, brigadistas chegando e sendo rendidos voltando para casa.

Há duas trilhas em estruturação e que já podem ser percorridas. A primeira é do morro do Caracará, de onde haveria uma bela vista, não fosse a fumaça. A outra vai beirando o morro por onde era antes alagado e há anos a água não chega mais até as gravuras e pinturas rupestres. Até onde soubemos, carecem ainda de estudos e de datação.

O Pantanal nos lembrou muito a Caatinga, tanto pela presença de cactos, quanto pelas folhas secas e árvores sem folhas, algumas que deveriam estar assim e outras que não se recuperaram desde o grande incêndio de 2020. E também pela presença das pinturas rupestres. Será que há 11 mil anos, no último período glacial a Caatinga secou de vez e os humanos caminharam para o Pantanal?

Além de Parque Nacional, esta área é um Sítio Ramsar que protege as áreas úmidas. E um Patrimônio Mundial Natural reconhecido pela UNESCO. Apenas 16 dos 75 parques nacionais brasileiros têm esse reconhecimento.

Serra do Amolar

Há algum tempo vimos um livro do Arquém Alcântara retratando a Serra do Amolar. Que lugar mais lindo e diferente, rodeado de água. Onde seria isso? Estaria num parque nacional?

Peraí: como assim na planície pantaneira tem uma serra? A serra está fora do parque nacional, mas um dos caminhos até ele passa por ela e foi o que optamos.

A saída é de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, percorrendo mais de 250 km do rio Paraguai acima. Nossa base foi a RPPN Acurizal, que também é parte do Patrimônio Mundial da UNESCO juntamente com o Parque Nacional. A RPPN é parte da Rede Amolar, que contaremos mais abaixo.

Voltando ao rio Paraguai: um rio cheio de histórias, muitas contadas no Museu de História do Pantanal (Muhpan). Vale a visita para se situar antes de conhecer o Pantanal. Além de apresentar os dez diferentes pantanais, também indica como foi a ocupação humana do bioma desde a pré história até hoje, passando pelos povos indígenas que aqui residiram e os ribeirinhos.

A serra do Amolar aparece imponente na margem direita do rio. Mas como o rio serpenteia lentamente o Pantanal, às vezes a serra está de frente e às vezes de lado, chega a quase 1 mil metros de altitude. Todas nossas imagens foram prejudicadas pela fumaça e pelo vento.

Rede Amolar e Reflorestamento

Em 2008 algumas organizações se uniram e criaram a Rede de Proteção e Conservação da Serra do Amolar que, como o nome diz, dedica-se a conservar a biodiversidade dessa região do Pantanal. São mais de 291 mil hectares, dos quais 136 mil são o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e o restante de RPPNs e fazendas.

RPPN significa Reserva Particular do Patrimônio Natural e é uma Unidade de Conservação, assim como um Parque Nacional, mas pertence a particulares. Ela é perpétua, é um compromisso que pessoas ou empresas fazem em conservar uma determinada área.

O Instituto Homem Pantaneiro foi quem organizou a Rede e bolou este roteiro pela Serra do Amolar, com base na RPPN Acurizal. O trabalho ali vai além do turismo e do monitoramento de fauna através de câmeras trap.

Em 2020 90% desta área foi queimada e naquele momento foi montada uma brigada de incêndio, que tem conseguido conter o avanço dos incêndios. Não fossem eles, este ano teria queimado tudo novamente.

E lá está ocorrendo um programa de reflorestamento, com espécies nativas e monitoramento próximo. Já foram plantadas mais de 5 mil mudas de 20 espécies. Nós tivemos o privilégio de participar de um piloto para que os visitantes plantem também suas mudas na propriedade.

Plantamos um jacarandá e um ipê rosa, que foram semeados pela Cris, de quem viramos fãs, e que serão cuidados por ela e toda a equipe. Longa vida às mudinhas. Que cresçam fortes, tenham suas sementes espalhadas pelo Pantanal e nos aguardem para uma nova visita.

A vida no Pantanal

Até agora, deu para perceber que nossa visita ao Pantanal foi muito difícil por conta de toda a fumaça e rastro de destruição que vimos. Olhos ardendo, vista embaçada, respiração pesada.

Mas, indubitavelmente, foi o bioma onde mais vimos animais silvestres, de longe. Estão ali e é fácil de ver. Como o Pantanal tornou-se esse lugar tão cheio de vida, com tantos animais circulando sem medo? Será que é pela ausência de humanos?

Desde a pré história há gente morando aqui. E assim como na Amazônia, os rios do Pantanal são povoados por comunidades ribeirinhas, que vivem em harmonia com o ambiente natural.

Qual será o segredo então? Não sabemos, mas recomendamos ir até lá o quanto antes. O Pantanal pede socorro, pode desaparecer logo. Ao visitar o bioma, além de levar recursos para as comunidades e instituições que o protegem, tomamos conhecimento dos fatores que ameaçam o Pantanal.

Tanto internos, desde o desmatamento até os incêndios, quanto externos, como o desmatamento e o uso excessivo de água em outros biomas, que faz o Pantanal secar ano a ano.

Jacarés, bocas d’água, tuiuiús, capivaras, lontras, garças, onças, ariranhas, para citar alguns, agradecem. Ribeirinhos, agradecem. E nós, seres urbanos, também vamos agradecer cada hectare protegido dentro e fora do Pantanal.

A onça inesperada

Foram mais de 3 anos atrás da danada, nos rendemos e fomos vê-la nos passeios de Porto Jofre. Nos demos por satisfeitos, mas seguimos com a vontade de cruzar com uma onça pintada na trilha.

Não foi exatamente isso que aconteceu, mas ao retornar de um passeio no Amolar um ribeirinho nos disse que havia acabado de ver uma onça subindo um barranco e deitando na beira do rio Paraguai. Lá fomos nós.

Uma onça ainda não registrada pelo projeto de monitoramento. E quando isso acontece, há a possibilidade de dar um nome. Que nome você daria a uma onça?

No link você pode acessar o mapa por onde passamos e ver em detalhes onde fica cada localidade citada acima:

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