De volta ao Cerrado
Depois de 14 meses visitando o bioma Amazônico, voltamos ao Cerrado. Este é o último dos 16 parques neste bioma que visitaremos na nossa expedição, aquela sensação de um reencontro com cara de despedida.
Tínhamos esquecido como era caminhar pelo berço das águas do nosso país, pelos chapadões sem fim e suas árvores com formato retorcido na floresta invertida: 2/3 das árvores fica abaixo da terra no Cerrado. 40% da água que abastece Cuiabá nasce na Chapada dos Guimarães.
Falando em Chapadas, há 4 parques nacionais em Chapadas, você sabe nomear e apontar no mapa onde ficam os outros? O Parna da Chapada dos Guimarães é o menor deles, mas não menos importante. Em número de visitas catalogadas, é o campeão: quase 150 mil em 2023.
E se tem algo que chama a atenção para além dos demais parques e chapadas são os paredões: imensos, cheios de formas e com uma coloração avermelhada linda. Esta é a borda do Planalto Central brasileiro. Além de lindo, imensamente importante.
O parque foi criado não somente para proteger as nascentes e a biodiversidade, mas também um patrimônio histórico importante e riquíssimo. Afinal, você acha que a gente descobriu isso tudo agora e ninguém morava lá há alguns milhares de anos?
Alguns dados importantes sobre o bioma, para começar a visita:
- Segundo a UNICAMP, o Cerrado já perdeu mais de 70% da sua cobertura original
- Segundo o MapBiomas, o Cerrado foi o bioma mais afetado pelo desmatamento em 2023: 61% do total desmatado no país
- Segundo a EMBRAPA, 71% das bacias do Paraguai-Paraná e do Araguaia-Tocantins dependem do Cerrado, além de 94% da bacia do São Francisco.
Importante? Muito! Urgente de proteger? Demais! E poucos brasileiros conhecem essas características do bioma:
Sim, há muita água, muita cachoeira para a gente se banhar. O parque está lá para proteger as nascentes e de quebra nos dá esse benefício da visita, que é bom para o corpo e a mente. E também para o bolso, centenas de famílias têm sua renda associada diretamente ao parque.
A autonomia da visita
A responsabilidade do guia vai (muito, mas muito mesmo!) além de mostrar um caminho. É com base em uma experiência guiada que uma pessoa pode definir se nunca mais fará uma trilha ou se fará uma expedição por todos os parques nacionais. Nós curtimos e aprendemos demais com visitas guiadas.
Mas também curtimos demais ir sozinhos a um parque, é assim que exercitamos o que aprendemos. Fizemos as contas, e a última vez que havíamos ido de forma independente a uma cachoeira havia sido no Parque Nacional da Chapada Diamantina em abril de 2023.
Desde então, fizemos trilhas auto guiadas, mas nunca mais havíamos ido a uma cachoeira passar o dia inteiro: lendo, tirando uma soneca, tomando banho de rio, observando as aves que vêm e vão, comendo nossa marmitinha.
A primeira vez que você vai desacompanhado pode ser estranha. Dá um medo de se perder, de fazer algo errado, de se acidentar. Mas aos poucos a gente aprende a se equipar, planejar a rota, se precaver para ter água e comida para o dia todo, sempre respeitando todas as regras, principalmente horário de saída para ninguém ter que vir te procurar.
Se você nunca fez, nós recomendamos. É um passo simples e que parece pequeno, mas que pode trazer aquela sensação de que você está num lugar especial graças a você mesmo.
E quando ir? Tem época melhor? A dica de ouro é: procure entre terça e quinta, é quando os parques são menos visitados e você corre o risco (bom!) de passar um dia inteiro sozinho numa cachoeira.
Véu de noiva e araras vermelhas
O principal cartão postal do parque é a cachoeira Véu de Noiva. Pudera, fica ali bem na entrada e tem uma vista estonteante para uma queda d’água de 70 metros. A qualquer hora do dia é linda (acredite, testamos todos), mas ela fica particularmente mais bonita à tarde, quando o sol reflete nos paredões e as araras vermelhas chegam para dormir por ali.
Não somente dormir, mas beber água. Haja coragem, elas ficam na beira do paredão. Se bem que elas não precisam ter medo de cair, né? hehehe. Parece haver uma hierarquia, vimos três casais: araras vivem 40 a 60 anos na natureza e são monogâmicas, voam com seu par sempre em sintonia, geralmente vocalizando.
Vimos elas também praticando a geofagia, comendo o arenito dos paredões. Aprendemos que elas fazem isso tanto para neutralizar toxinas de algumas frutas quanto para obter sal.
E tivemos um encontro fortuito com elas na Cidade de Pedras, que contaremos mais abaixo em detalhes: talvez por conta do frio, um casal veio ficar bem pertinho de nós, numa distância que nunca havíamos visto antes. Então, se você gostar de cachoeiras e/ou de araras, este aqui é o seu lugar.
Cerrado de cima, de baixo, de dentro
Você chega de Cuiabá ao parque em menos de 1h30 e passa por uma das estradas mais lindas do nosso país (achamos que temos moral para falar isso), de cara com o paredão. E um dos principais roteiros permite você ter uma visão 360 e imersão completa do Cerrado.
Tudo começa cedinho na Cidade de Pedras, que fica em cima do platô da Chapada. Uma trilha tranquila cheia de mirantes panorâmicos para dar aquela situada de que você está num lugar especial. O cerrado anão ajuda a ampliar a vista para baixo, mas não se engane: não há sombra e é bom ficar lá de manhã, antes que esquente.
De lá você desce para o Vale do Rio Claro, onde está a formação da Crista de Galo, de onde você tem a vista inversa: você vê a imensidão dos paredões. Essa é a última etapa seca, daí em diante o negócio é agua.
Você entra naquele cerrado todo que havia visto de cima e começa a caminhar pelas trilhas de mata mais seca. Até que de repente, como num passe de mágica, fica tudo úmido e a floresta se transforma. É a tal da mata de galeria.
O Poço das Antas é bem calmo, cheio de peixinhos que ficam te olhando achando que você pode ser comida. Pode rolar um beliscão ou outro, mas as piabas são inofensivas e a transparência da água é incrível.
De lá, o roteiro muda e tem uma flutuação até o poço verde. É só colocar a máscara de mergulho para se deixar conduzir pelo rio Claro, que dispensa interpretações sobre o nome.
Um dia inteiro para ver e sentir o que é o Cerrado.
Morro de São Jerônimo
Há também uma trilha mais longa que leva ao ponto culminante do Parque Nacional: o Morro São Jerônimo. O caminho é praticamente plano até uma subida íngreme, que requer cuidado pois há dois pontos escorregadios e expostos.
A trilha tem pouca sombra e não tem água, é recomendável ir na época pós chuvas, entre abril e junho. Fomos em agosto, quando os ventos do cerrado sopram e dissipam as sementes aladas, o que ajudou na temperatura. Há um trecho de escalada, que não requer cordas hoje, mas requer muita atenção.
Você passa por diversas formações lindas, pedras equilibradas e esculpidas pelo vento. Chega a campos que parecem dançar ao sabor do vento. E lá de cima, além de ver fósseis de conchas que denunciam que aqui já foi fundo de mar, tem uma vista linda para a Planície Pantaneira, onde fica a cidade de Cuiabá.
Capitais com vista para Parques Nacionais
Já pensou acordar e ver um parque nacional da sua janela? É nosso sonho e que temos realizado. Mas paulistanos que somos, é um sonho distante a ser realizado no longo prazo.
Você sabe quantas capitais têm vista para um parque nacional? Quais seriam elas? No nosso site indicamos os parques perto de grandes centros e de aeroportos (faça a busca aqui), mas vamos ajudar aqui e indicar os parques que podem ser avistados desde a janela de alguém que mora numa capital:
1 – Parna de Brasília: Brasília
2 – Parna da Chapada dos Guimarães: Cuiabá
3 – Parna da Serra de Itabaiana: Aracaju
4 – Parna da Serra do Gandarela: Belo Horizonte (quem sabe não é daí o nome?)
5 – Parna do Mapinguari: Porto Velho (tem que dar uma esticada no pescoço mas é possível)
6 – Parna da Serra dos Órgãos: Rio de Janeiro
7 – Parna da Tijuca: Rio de Janeiro (sim, o RJ tem o privilégio de ter dois Parnas como vista)
Arenito, água, Cerrado e Pantanal: o que tem isso a ver?
A Chapada é a beirada do Planalto Central, para baixo fica a Planície Pantaneira. E o Pantanal é um bioma que não tem nascentes, então aquela água vem (ou vinha, infelizmente) principalmente do Cerrado. Parece papo chato de vestibular, mas vendo que a gente faz as conexões, e são muitas!
Um morador de Chapada dos Guimarães, fez um experimento bem didático. Ele começou a despejar a água de uma garrafa num bloco solto de pedra. Aquela pedra foi chupando toda a água, sem despejar uma gotinha.
Esse é o solo da Chapada dos Guimarães, um arenito que funciona como esponja e abastece o “tal do” aquífero guarani. Ou seja, o aquífero não é uma camada de água cercada de rocha lá embaixo da terra, é uma rocha porosa toda cheia de água.
Quando chove, ela abastece. Quando não chove, ela continua soltando água pouco a pouco para os rios. Quanto menos água entra, menos água é armazenada e menos água segue para os rios, daí é pura matemática.
Como a Amazônia vem sendo desmatada e os rios voadores não estão se formando como antes, chove menos no Cerrado. Ao mesmo tempo, grande parte da cobertura vegetal foi retirada do Cerrado, fazendo com que a água não seja absorvida, mas evaporada.
E do que entra, muito é usado nos grandes latifúndios para produção de grãos. Para completar, ao lado da Chapada há garimpos, que são grandes consumidores (e poluidores) de água, além de uma capital cuja população vem aumentando (17% entre 2010 e 2022, segundo IBGE).
Perdoem-nos os geólogos pelos possíveis erros. A ciência de vocês não surgiu ontem, nós que somente tomamos conhecimento na prática agora. Ao tomar conhecimento, ficamos pensando o que estamos fazendo com isso tudo.
Mesmo \sabendo de toda essa importância, consumimos desenfreadamente e acabamos com nossos biomas e os seres que lá vivem (em alguns casos, inclusive humanos).
O Portão do Inferno
A cênica estrada que liga Chapada dos Guimarães a Cuiabá foi construída na década de 70. Ela corta 10km da área de onde hoje é o Parna (criado em 1989), bem ao lado de paredões numa área linda e sabidamente sensível (vide acima).
No final do ano passado, por ação natural, uma rocha se desprendeu e caiu na estrada. Ninguém se machucou por sorte. Isso pode voltar a acontecer todo dia ou daqui a 50 ou 500 anos. A estrada foi bloqueada, depois liberada um lado por vez.
Foi submetida uma tratativa em caráter de urgência que resultou em uma única proposta: retirar (retaludar é o termo correto) a montanha, que abriga até um sítio arqueológico.
A estrada ficaria bloqueada durante o dia por pelo menos 120 dias, dificultando idas e vindas de moradores e colocando em risco o turismo (lembra que são mais de 150 mil visitas ao ano, imagina a dependência econômica?). Isso se esse prazo for cumprido e se nenhuma pedra rolar durante a obra, bloqueando a via.
Por ocasião do Festival de Inverno, no início de agosto, a pista foi completamente liberada e parece ter perdido urgência. A execução do projeto tem 20 condicionantes do ICMBio, que não é responsável pela construção ou manutenção de estradas, mas que zela pelo Parque Nacional.
Há cerca de 20 anos, em um projeto de duplicação da rodovia foi proposta a construção de uma ponte, que não somente preservaria o patrimônio histórico como minimizaria impactos e riscos durante a construção. Essa proposta, que preservaria o patrimônio histórico, não foi trazida novamente.
Estivemos presentes na visita técnica com a equipe do ICMBio e diversos representantes da sociedade civil enquanto os carros continuavam passando pela estrada, muitos nos xingando (afinal, quem está pelo meio ambiente ouve e passa por isso todos os dias).
E presenciamos o que pode ser o adeus a algo que sequer foi estudado. Esperamos que alternativas sejam apresentadas e que todos possam não somente visitar este sítio arqueológico, como colher os benefícios dos estudos que requerem que ele continue lá. O paredão é de arenito, não é algo que se retira e se coloca num museu, é algo que pode virar areia se houver uma tentativa de retirada.
Banho de Cachoeiras
Se você curte uma cachoeira, aqui tem de monte. Atualmente há dois circuitos, um mais curto pela Cachoeira dos Namorados e Cachoeirinha. E outro mais longo, chamado de Circuito das Cachoeiras, passando pelas cachoeiras do Pulo, dos Degraus, da Prainha e Andorinhas, além das Piscinas Naturais.
Nós somos adeptos de refazer trilhas em diferentes dias e horários. E de curtir verdadeiramente as cachoeiras, passar um dia inteiro numa delas. A maior parte dos visitantes reserva um dia para visitar tudo e acaba fazendo uma correria entre elas, querendo ver tudo e ao mesmo tempo aproveitar. Recomendamos muitos dias, por mais que possa parecer repetitivo.
Nós ficamos pensando em como qualificar as cachoeiras, mas são critérios sempre subjetivos. Pensamos no seguinte: 1) quão vistosa é a queda; 2) se dá para tomar banho ou só olhar; 3) temperatura da água; 4) se dá para fazer hidromassagem; 5) se dá para estender uma canga e passar o dia.
Não menos importante avaliar o quão acessível é a cachoeira. O ambiente natural pode ter um acesso bastante desafiador àqueles que têm necessidades especiais, o que requer atenção e orientações. Vamos buscar trabalhar em documentar melhor nesse sentido.
Mas também depende se a cachoeira está muito cheia, se está chovendo, se você esqueceu de levar comida e quer voltar logo porque ficou com fome.
Quando visitamos o parque, a concessionária ainda não havia iniciado os trabalhos. Tomamos conhecimento de diversos atrativos que estão fechados por falta de pessoal para manejo de trilhas ou controle de acesso. Esperamos que em breve a situação se normalize e tenhamos ainda mais lugares neste maravilhoso e icônico parque para visitar.
A última cachoeira da expedição
Foi por acaso: os últimos 5 parques nacionais “caíram” em 5 biomas diferentes. Este é o último parque no berço das águas e portanto o último com cachoeira. Nos demos conta de repente, quando chegamos à cachoeira do Degrau. Nem deu para ficar saudosista ou comemorar.
Não sabemos quantas cachoeiras visitamos ou em quantas nos banhamos. Talvez a gente nunca faça as contas e a verdade é que não importa. Cada uma é única, cada dia ela mexe contigo de uma forma diferente, algumas encantam pela água, outras pelo entorno, outras pela geologia.
Neste finalzinho de expedição vamos dar uma dica. Se e quando puder (não demore muito porque está tudo em risco) experimente todos os nossos biomas. Viva duas semanas em cada um, ache seus encantos, saiba reconhecê-los. Saia deles transformado, ciente de suas singularidades e suas relações.
E aproveite cada cachoeira do seu caminho. A gente nunca sabe qual pode ser a última.
No link você pode acessar o mapa por onde passamos e ver em detalhes onde fica cada localidade citada acima:
Pingback: Parque Nacional do Pantanal Matogrossense: o parque desidratado - Entre Parques BR