BR 319
Você já ouviu falar na BR 319, a estrada que liga Manaus a Porto Velho? São 880km, dos quais metade em terra, cheio de balsas no caminho. É ali onde vira e mexe ocorrem aquelas cenas de atoleiros, pessoas empurrando ônibus, descendo na lama, esperando dias para ela secar e seguir.
Pelo nosso planejamento, íamos cruzar essa estrada na pior época, no final do inverno amazônico, a época de chuvas. Ou seja, pouco provável. A alternativa era pegar um barco de Manaus a Porto Velho que levaria 4-5 dias (impreciso assim mesmo).
Além do custo, queríamos evitar tanto tempo em viagem. É lindo, mas é cansativo e caro. Mas não íamos nos arriscar à toa.
Graças ao João e Carina, nossos amigos do @cronicasnabagagem, tomamos conhecimento de um grupo de whatsapp e começamos a monitorar as condições da estrada. Diariamente algumas pessoas percorrem de moto filmando e mandando notícias e colhendo doações por pix.
Neste ano (início de 2024) choveu pouquíssimo na Amazônia. Bom para quem quer cruzar a 319, ruim para todo o mundo. Na semana anterior começamos a monitorar mais de perto, estava seco: “vamos de carro”, falamos!
Três dias antes caiu um dilúvio e deu receio: “vamos de barco”, falamos… Mas daí parou de vez, as notícias eram de uma estrada seca. Lá fomos nós, pegamos a primeira balsa (4h da manhã) de Manaus para tentar chegar “do outro lado” ainda de dia.
Há quem percorra em um dia, a 100-120km/h em estrada de terra. Muitos desses (4 na semana anterior à que cruzamos), capotam. Conseguimos chegar à metade, onde pernoitamos para seguir no outro dia. Nessa noite choveu muito, e sentimos um pouco do que é uma pista escorregadia e convexa. Do nada o carro começa a patinar e não custa nada cair nos alagados do lado, nada! Sorte que faltava pouco…
A BR 319 e o parque nacional
O parque nacional foi criado no momento em que começaram a discutir o asfaltamento da BR 319. É um tema controverso e bastante político, mas vamos aos fatos e números.
Segundo a Mongabay, “Quase 95% do desmatamento na Amazônia pode ser encontrado em um raio de 5,5 km da estrada ou rio, e 90% dos incêndios ocorreram em ate 4km de estradas ilegais construídas nas florestas”.
“As estradas têm benefícios (…) mas o problema é que elas também abrem caminho para atividades mais destrutivas, permitindo o acesso de madeireiros, mineradores e grileiros, que expandem a linha relativamente pequena de desmatamento causada por estradas para as laterais, em um padrão conhecido como “espinha de peixe”.
O asfaltamento da BR 319 tem um potencial de causar impactos em cerca de 300 mil km² da Amazônia: área maior que o estado de São Paulo, segundo estudo do Climate Policy Initiative (CPI) afiliada à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em parceria com o Projeto Amazônia 2030.
Mais dia, menos dia, o asfaltamento vai sair. O parque é e continuará sendo um tampão para esse desmatamento potencial (o potencial acima já considera um desmatamento mínimo nas Unidades de Conservação!).
Não há ainda nenhum ponto de acesso ao parque, exceto para pesquisadores, pela BR319, mesmo que margeie o parque. Poderíamos ter nos dado por satisfeitos, dado que percorremos cerca de 100km ao lado do parque pela BR, não é mesmo? Só diz que sim quem não nos conhece bem, hehehe…
Tapauá, a cidade flutuante
Tapauá é uma cidade com 15 a 20 mil habitantes no Amazonas às margens do rio Purus (água barrenta) e do igarapé Ipixuna (água preta). Até aí tudo bem.
Mas e se a gente disser que a única forma de chegar até lá é de barco, descendo o rio Purus por 750 km desde Lábrea ou subindo 450 km a partir de Manaus? Ou de avião, é claro, mas isso é para outros bolsos.
De início, já dá para perceber que é melhor ir de Manaus, né? Mas e se você só tomasse conhecimento disso depois de já ter cruzado para o sul da Amazônia? O jeito é pegar um barco recreio de Lábrea e descer 40-50 horas.
Desses que levam até 300 pessoas e carga (de ovos a carros), saem uma vez por semana, sem muita hora de chegar. A volta leva 84 horas, e isso até Lábrea, depois ainda são mais 420 km entre Transamazônica e asfalto até Porto Velho.
Vamos pular a parte de como é difícil conseguir informações sobre quais barcos existem, quando saem, quando voltam, quanto custa, quanto demora. Se um dia você for, nos avise e será um prazer dividir. A viagem de rede é uma delícia, pelo menos pelas primeiras horas.
Bom momento para colocar a leitura em dia, para ouvir podcasts, observar a paisagem. Recomendamos a todos fazer uma viagem de barco recreio na Amazônia, mas recomendamos alguns mais curtos e fáceis, como Belém Macapá.
Eis que chegamos a Tapauá uma cidade com mais de 800 famílias vivendo em casas flutuantes. Além das casas, igrejas, supermercados, uma despolpadeira de açaí que é fábrica de gelo… A água vem do rio e o esgoto vai direto para o rio também, onde as pessoas se banham, pescam, limpam o gado criado nas proximidades.
Um mundo à parte, uma realidade muito distante da nossa. Daí nos dizem que “essas pessoas são acostumadas, elas sabem viver assim”, mas achamos que “essas pessoas não tiveram opção, tiveram que se acostumar a isso e não têm alternativa a viver assim”.
O parque das beiradas
Sim, é um dos parques nacionais mais difíceis de acessar no Brasil. E ainda assim, ele é quase impenetrável, você visita pelas beiradas: percorrendo a BR319 de carro ou subindo de voadeira o Igarapé do Jacinto na época alagada (na época seca não há como chegar por ali). É lindo? Sim! Mas vale a viagem? Vamos ser sinceros: só se você quiser ter a experiência de muitos dias num barco.
Imediatamente, você pensa: “então ninguém conhece, ninguém vai!”, até que passar por uma cidade de 20 mil habitantes onde achava que só haveria floresta e ver que ao outro lado do rio está a Floresta Estadual de Tapauá, onde vivem cerca de 900 famílias e onde o desmatamento atingiu um recorde em 2022. Parte dessas famílias viviam na área do parque e mudaram-se quando o mesmo foi criado.
O igarapé do Jacinto, que olhando no mapa fica no “meio do nada” tem um trânsito frequente de barcos trazendo mantimentos e levando produtos como mandioca, farinha e gado, além de madeira, que começa a sair pela BR 319 através de pequenos ramais.
O Parna Nascentes do Lago Jari teve desmatamento quase zero e pouquíssimos focos de incêndio recentemente. Que siga assim! Apesar que as forças de asfaltamento que trará o efeito “espinha de peixe” hoje são bem mais fortes que as forças de conservação de proteção.
No link você pode acessar o mapa por onde passamos e ver em detalhes onde fica cada localidade citada acima: